segunda-feira, 11 de março de 2024

Com Peary e Henson na ilha de Ellesmere - relato de um explorador em rota para o Pólo


Mapa da expedição de Robert Peary ao Pólo Norte , em 1909


Matthew Henson foi um dos primeiros homens a chegar ao Pólo Norte, ou pelo menos a chegar perto, algumas dezenas de quilómetros, em 1909. A expedição que tentou esse feito foi a terceira do grande explorador Robert Peary, um americano megalómano, que contou com a ajuda de quatro esquimós (Ooqueah, Ootah, Egingwah e Seegloocom) nas cargas de trenó e nos acidentes de trajecto, e do navegador Matthew Henson que se descrevia como "de raça negra", com orgulho. No pequeno vapor 'S.S. Roosevelt' seguiam ainda 246 cães ! Que equipa mais estranha.

A familia esquimó no convés do Roosevelt. Duas mulheres também estavam na equipa de apoio.
Robert Peary, comandante do 'S.S. Roosevelt' e da expedição

Mas quem me surpreendeu foi Matthew Henson, ainda mais quando soube que era de pele escura. Nasceu já livre, coisa rara na época (1866), e iniciou a carreira como grumete; mas era empregado de armazém quando conheceu Peary. Foi com ele que começou a navegar e aprendeu o modo de vida Inuit. Iriam ser companheiros durante 18 anos em várias expedições.

O que vou transcrever é a tradução de um belo excerto do diário de Henson na viagem de 1909, mas antes disso quero dar alguns detalhes.


O acesso ao mar gelado do Ártico polar fez-se a partir da ilha de Ellesmere, um território imenso e quase deserto onde só há uma povoação inuit, Grise Fiord, no Sul. A equipa de Peary, num total de 22 incluindo homens de apoio, estabeleceu-se no extremo Norte, em Cape Sheridan, para a quarentena de Inverno a bordo do vapor Roosevelt.

A chegada ao Cabo Sheridan foi a 5 de Setembro de 1908, após uma viagem difícil a romper gelo ao longo do Canal de Robeson, que separa a ilha da Gronelândia.

O Roosevelt chega ao Cabo Sheridan.


O Roosevelt ancorou numa brecha da maré de gelo, encostado a uma crista de pressão. O navio fora encomendado por Peary expressamente para a expedição, e foi mais um factor de sucesso. Tinha a quilha de madeira com 70 cm de espessura, reforçada com um sistema de traves flexíveis contra a pressão do gelo, e o revestimento do casco em espessa folha de ferro.


Durante quinze dias procedeu-se à descarga de trenós, mantimentos e outras provisões, instrumentos e cães, que ficaram em terra abrigados em caixas cobertas pelas velas do navio. A tripulação manteve-se a bordo, com as caldeiras e o motor a trabalhar durante  seis  meses, fazendo manutenção, jogos, leituras e planeamento, e revezando-se em vai-véns para provisões. O lugar deste acampamento fica próximo da actual Estação Polar Alert.

Só em Fevereiro do ano seguinte, 1909, quando a primeira luz se vislumbrou depois da noite invernal, uma primeira equipa arrancou com os trenós para o Cabo Columbia. Seguiram-se outras, mas apenas seis homens e cinco trenós iriam fazer a última marcha para o Pólo através do mar Ártico, duas semanas depois, a 1 de Março.

Os picos de Cape Columbia

Cabo Columbia, a 83°07′ N, fora escolhido como ponto de partida da última etapa sobre a placa do Ártico porque é o ponto mais setentrional do Canadá ( e o segundo do planeta), oferecendo assim uma distância mínima até ao Pólo, 769 km (478 mi). A placa oceânica tem uma espessura à volta de 2 metros de gelo, mas o seu movimentos cria cristas de pressão que a alteram constantemente. 

É esse percurso desde o Roosevelt até ao Cabo Columbia que Henson descreve neste excerto: "uma região de soturna magnificência". 


" Penhascos ressaltados que se projectam sobranceiros à trilha; promontórios selvagens e escuros, que somos obrigados a contornar, que se arremedam sobre as águas cobertas de gelo do Oceano, vastas extensões de planície gelada varrida pelo vento, e tudo isso em sucessão nas noventa e três milhas entre os dois cabos; foram precisas três étapas para as percorrer."


" Fevereiro, 23: Forte nevão mas praticamente sem vento esta manhã pelas 7 h.
(...)
Há um irresistível fascínio nas regiões do extremo Norte da Terra de Grant que me é impossível descrever. Não tenho espírito poético e fui endurecido por muitos anos de experiência nesta terra inóspita, as palavras adequadas para dar uma ideia da sua beleza única não me ocorrem. Imagine-se uma desolação admirável, um espantoso descampado branco. Nunca parece ser dia, dia amplo e claro, mesmo a meio de Junho, e o céu tem diferentes aspectos que variam ao longo das horas de crepúsculo matinal, do crepúsculo do entardecer, do primeiro ao último vislumbre de luz."
 

O regresso do Sol.

" Nos princípios de Fevereiro, ao meio dia, uma estreita faixa de luz aparece no horizonte na direcção do Sul, anunciando a vinda do Sol, e dia após dia a duração do crepúsculo aumenta, até que nos primeiros dias de Março o Sol é um disco flamejante de vermelho-púrpura que se eleva, com uma imagem distorcida, um pouco acima do horizonte. Esta forma distorcida deve-se à miragem causada pelo frio, tal como ondas de calor sobre os carris de ferro de uma linha de combóio distorcem a forma dos objectos que estão mais para além."


"As encostas voltadas a Sul dos picos mais elevados já reflectiam há muitos dias a glória do Sol vindouro, e não é preciso um artista para disfrutar estas esplendorosas vistas sem igual."




" As neves que cobrem os picos mostram todas as cores, variações e tonalidades de uma palette, e mais. Já vieram conosco artistas ao Ártico e ouvi-os em delírio com as fantásticas beleza do cenário, e vi-os trabalhar a tentar reproduzi-lo parcialmente com bons resultados mas nada que se compare ao original. Como disse Mr. Stokes, 'it is color run riot' (é um tumulto de cores)."


" Mas em direcção a Norte é tudo ainda escuro, e as estrelas mais brilhantes do céu sáo visíveis, mesmo que enfraquecendo aos poucos conforme a luz aumenta.

Quando finalmente o Sol sobe acima do horizonte e percorre a sua curva diária, os efeitos de cor são cada vez menos, mas então crescem os efeitos de céu e núvens, e as sombras nas montanhas e nas fendas e agulhas do gelo exibem outra beleza - azuis glaciais e cinzentos; as manchas descobertas de terra, tons tons de castanho; e a ofuscante brancura da neve deslumbra."


"Ao meio dia, a sensação óptica da nossa sombra é a das nove horas da manhã, devido à baixa elevação do Sol, sempre causando sombras alongadas."


" Sobre nós, o céu é azul brilhante, mais azul que o do Mediterrâneo, e as núvens, desde as caudas sedosas dos Cirros até aos fantásticos e carregados Cúmulos, são sempre belas. Isto é a descrição do bom tempo."

(...)
" Quase todos os sítios servem para se conseguir um boa selecção de vistas; no Cabo Sheridan, o nosso posto de comando, estávamos rodeados de lugares marcantes que se tornaram históricos: para Norte o Cabo Hecla, ponto de partida da expedição de 1906; para Oeste. o Cabo Joseph Henry, e mais adiante, os dois picos do Cabo Columbia de costas voltadas ao Oceano.


Do Cabo Columbia a expedição ia agora deixar terra firme e seguir em trenós sobre as placas de gelo que cobrem o Oceano durante quatrocentas e treze milhas para Norte — até ao Pólo!"
                                                                                                  Matthew Henson, 2009


-------------------------------------------------------------------------------------------------------------

A expedição atingiria o Pólo Norte, ou as suas proximidades mais quilómetro menos quilómetro, em 6 de Abril de 1909. O mais certo é que Peary, perante a extrema exaustão de homens e cães, percebeu que era melhor parar e regressar, uma vez que tinham o objectivo à vista. A comunidade Geográfica pôs em causa o feito de Peary, tal como pusera em causa o feito do seu grande rival Scott no ano anterior. O único e incontestado explorador que comprovou ter chegado aos 90º N foi o inglês Wally Herbert, já em 1969, sessenta anos depois de Peary. 


--------------------------------------------------------------------------------------

Fontes documentais

https://www.gutenberg.org/files/67973/67973-h/67973-h.htm

O texto de Matthew Henson foi lido no livro "Nature Tales for Winter Nights", uma compilação editada por Nancy Campbell.

domingo, 3 de março de 2024

Nova Iorque, 1998, estivémos lá e subimos às Torres.

- Este post tardou imenso, foram três semanas sem publicar. As fotos estavam em diapositivo (slide) e tive que as digitalizar e corrigir. Espero que valha a demora... -

Pouco antes antes da tragédia das torres do WTC, viajámos até Nova Iorque, numa Páscoa soalheira de 1998. As cerejeiras estavam em flor, e depois do chuveiro que nos recebeu no primeiro dia, o sol deu-nos uma luminosidade primaveril.

Assentámos na 8ª Avenida, hotel Milford Plaza, que era 'barato' para turistas tesos como nós, num prédio mastodonte muito alto e feio. Ouvia-se toda a noite o alarme aflito das ambulâncias, deviam ser centenas permanentemente, não sei se polícia também. Não se dorme sem janelas duplas.

  


A 8ª Avenida, fealdade novaiorquina.

Foi até certo ponto desanimador o primeiro dia. Para mais a grande diferença horária baralhava as horas de luz, de fome e de sono. Tínhamos marcado o Phantom of the Opera na Broadway, e quase o perdemos porque tínhamos adormecido... o que nos valeu é que era mesmo ali ao virar a esquina.

Uma superprodução de encher o olho, casa cheia (muitos asiáticos).

 

M.o.M.A.

Era o museu que ficava mais próximo, três esquinas só, decidimos ir ver especificamente certas obras, e obviamente, a maior preciosidade:

 

Mantive-me algum tempo a pasmar, depois voltei outra vez, mas não fica nada na memória, só valem aqueles momentos em que se está frente a frente com Van Gogh a tentar decifrar a poesia da imagem, a noite estrelada na Provença como nunca mais ninguém a viu. E esta foto é só minha.

Também gosto muito deste City Square, de Giacometti


 
Um holandês, um suíço, agora um austríaco - a Europa.

Oskar Schlemmer, 'Bauhaus Stairway' ,1932

Vimos também Monet, Cézanne, Pollock e o meu primeiro Rothko ! Há 25 anos... Na manhã seguinte iríamos passear.

Battery Park

Era Abril, as cerejeiras estavam floridas e o Battery Park cheio de luz e côr.



Mas a minha favorita é esta:

Bonita memória esta, não é ?

Brooklyn Bridge 

Fomos depois atravessar a ponte para ver a melhor perspectiva da frente fluvial. Tivemos sorte com o dia de sol glorioso.



Depois fomos a Brooklyn de Metro. Não gostei.
Mas iríamos voltar à ponte para a imperdível vista nocturna.

Museu Guggenheim


Incontornável, adjectivo já gasto, mas admirável.
 

Em 1998 decorria uma exposição sob arte chinesa, "China: 5,000 years". Não é o meu prato favorito, mas não tinha escolha.



Foi a primeira grande exposição dedicada à China, com as figuras em terracota
 

A colecção permanente não é nada que me agrade; lá está ainda assim 'Femme aux cheveux jaunes' de Picasso:

 
E aproveitámos para ir à cafetaria; é hábito nosso recorrer aos museus para não perder muito tempo (são self-service), aproveitar para um descanso antes da última volta,  e conseguir pequenas refeições económicas. Também fomos duas vezes a uma Deli na nossa rua, o 'America's Finest', mistura de mercearia, café, fast food, take-away... Nova Iorque é muito cara.

Greenwich Village e Blue Note

Durante uma primeira passeata em Greenwich Village, tínhamos andado por aqui e adquirido bilhetes para o único concerto durante a nossa estada.

Não me lembro que concerto era, mas pelas procuras que fiz é possível que tenha sido John Mellencamp, um guitarrista de country, ou a banda do guitarrista Mike Stern.

Um bom posto de observação do Homo Americanus Newyorkensis.


No dia seguinte acordámos mais cedo e, meio ensonados, fomos tentar subir ao observatório da Torre 2 do World Trade Center, que abria às 9.30 e depois a fila ia crescendo.

Uma das fotos que me dá mais gosto ver agora do que a vista naquela manhã.

Torres Gémeas do WTC

Só havia um terraço acessível para observação, na Torre Sul.


 
O primeiro elevador era grande e rápido, depois mudámos para atingir o 107º andar, com algum tempo de espera e um espaço mais apertado. A primeira impressão foi mais de vastidão enevoada que de altura.

 
 A visão era sempre empoeirada pela poluição.

Fiquei na dúvida se valeria voltar ao fim da tarde, mas o tempo não chegou. A melhor foto foi esta:

Dois anos depois as torres tinham deixado de existir, com quase 3000 pessoas, que não eram turistas. Deve ter sido o fim do sonho americano, e o de um século XXI melhor que o XX.

Na manhã do dia seguinte começámos por ir de ferry a Staten Island, outro must. Mas o tempo esteve enevoado e frio, foi um fiasco. Valeu a noite:

Brooklyn Bridge night 
 
Quisemos voltar para disfrutar a fama do lusco-fusco na frente fluvial, quando as luzes se acendem nas centenas de arranha-céus.

Outra foto de que tenho vaidade. Histórica...

Não esquecerá nunca.

National Museum of the American Indian


É um museu enorme, de entrada livre, com milhares de artefactos das várias populações indígenas americanas.


O que mais valeu foi a documentação na loja, de onde trouxemos alguns livros.


Vaso com tampa, Delaware

Saco de ombro ou tiracolo, Delaware

Washington Square, Greenwich Village


Era uma referência literária (Henry James) onde queríamos ir ; nesta altura já nos desenrascávamos melhor no Metro, e assim fomos. Para Henry James, viver na 'Row', a frente de casas victorianas do séc XIX , era o máximo do requinte.
 
 
 
Construídas em 1833 com tijolo vermelho e portais e escadaria em mármore, no coração de Greenwich Village. Hoje são apartamentos de interior modernizado, gozando de uma praça ajardinada à porta.


  
Demos depois uma passeata pelas ruas do Village.



Central Park

Ficou quase para o fim, mas ainda mereceu umas boas três horas. Chegámos ainda cedinho pela manhã.


Entrámos pelo 'Reservoir' junto à 89th, e fomos contornando pelo lado sul até ao Lago.
 

Era bem fria a manhã, mas as cores já eram quentes.


Estávamos a chegar à Bow Bridge, a fotogénica ponte em arco por onde nos deixámos ficar a gozar a Primavera.


A última etapa deixou-nos os pés martirizados, mas antes de sair não podia deixar de dizer olá aos "Strawberry Fields".


Ao Imagine também.


E saímos pelo lado poente.

South Street Seaport
 
Era um fim de tarde de domingo, um pouco húmido e frio, pouca gente por ali; é uma das zonas "históricas" de Nova Iorque, que data da efémera presença holandesa, centrada no porto de New Amsterdam, na actual Manhattan. O primeiro cais foi estabelecido em 1625, para a Companhia das Índias Ocidentais. Durou pouco, os ingleses vieram em 1664 e ocuparam toda a região holandesa. Há um Seaport Museum em Water Street, mas estava fechado.


Casa Georgiana em Water Street, uma das mais antigas da cidade.

No largo à entrada da Fulton Street foi implantado um farol, a prestar homenagem às vítimas do Titanic.


Fulton Street


O quarteirão de Pearl Street, Water Street e Fulton Street ainda mantém ruas 'europeias', parece mais que estamos em Londres ou Amsterdão. É um local único de lazer e História, com casas do séc. XVIII.

O Pier 16, onde nasceu o Seaport Museum, é onde estão atracados alguns dos navios do Museu, como os veleiros Ambrose e Pekin.


Sem dúvida uma das melhores vistas de Nova Iorque.

 

Não havendo concerto nem ópera na agenda, fomos até Lincoln Square só para disfrutar a praça e o ambiente em frente à sede da mítica New York Phil. Tivémos sorte: com vista para a fonte, finalmente conseguimos em Nova Iorque o primeiro café bem tirado, expresso, ao ar livre, e com licença para fumar ! (tudo isto acabaria poucos anos depois).

O Lounge Café do David Geffen Hall, ao lado do MET.

 

Despedida, fazer as malas e deitar cedo para apanhar o voo de regresso pela manhã.