segunda-feira, 26 de setembro de 2011

ler e reler: Uma Noite em Lisboa

Die Nacht von Lissabon, Erich Marie Remarque

«Cheirava a peixe, alho, flores, sol morto e sono.»


Já há muito não lia nada com esta intensidade e riqueza literária. Vale bem a (re)leitura, esta edição Não Nobel do Público do clássico de Remarque. E como é curioso ver quanto Lisboa significou para os europeus durante a 2ª Guerra - um refúgio amigo e luminoso, quem diria, sob regime salazarista! Curiosíssima ditadura essa, podemos avaliar agora com a distância, que permitia a liberdade a quem chegava fugindo do terror.

Romance desesperado e testemunho histórico: a vida vive-se hora a hora junto ao abismo, nesta obra quase terminal onde, aos 64 anos, passa muito da tormentosa existência de Remarque.


Notas da edição da Camões e Companhia, 2010:

A Alemanha Nazi ocupava grande parte da Europa. Terra de todos e de ninguém devido ao jogo duplo de Salazar, Lisboa foi durante toda a guerra um território neutro. Num cenário de guerra e perseguição, tornou-se o paraíso à beira-mar plantado. Para além da sua beleza natural e da paz, foi uma das poucas portas de saída para os que desejavam uma oportunidade para construir uma nova vida do outro lado do Atlântico.

Depois… uma noite em Lisboa, quando um refugiado olha cobiçosamente para um transatlântico, um homem aproxima-se dele com dois bilhetes de embarque e uma história para contar. É uma história perturbante de coragem e traição, risco e morte. Onde o preço do amor vai para além do imaginável, e o legado do mal é infinito.


Excertos:

«Demorei-me a olhar fixamente para o navio. Profusamente iluminado, o barco aguardava fundeado no Tejo. Embora estivesse em Lisboa há já uma semana, ainda não me habituara à sua iluminação exuberante. Nos países por onde nteriormente passara, à noite as cidades jaziam escuras como minas de carvão, e uma lanterna nas trevas era mais temível do que a peste na Idade Média.»

«A costa portuguesa tornara-se na última esperança dos fugitivos para quem a justiça, a liberdade e a tolerância eram mais importantes do que a pátria e os meios de subsistência. Portugal era uma ponte para a América. Quem não conseguisse alcançá-la, estava perdido, condenado à morte lenta num dédalo de consulados, esquadras de Polícia e repartições públicas, onde os vistos eram sempre recusados e as licenças de trabalho e residência impossíveis de se obter, uma selva de campos de internamento, pesadelos burocráticos, solidão e saudade onde se definhava perante a indiferença generalizada.»

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«Saímos do táxi e seguimos a pé por escadarias e ruas sinuosas. Cheirava a peixe, alho, flores, sol morto e sono. De um lado, sob a Lua nascente, o Castelo de São Jorge sobressaía na noite, e o luar descia em cascata pelos degraus. Voltei-me e olhei para o porto lá em baixo. Ali estendia-se o rio, e o rio era sinónimo de liberdade e vida; corria para o oceano, e o oceano queria dizer América.»

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«Nunca me hei-de esquecer daquela noite. Todas as partículas do meu ser estavam alerta, os sentidos bem despertos, sentia-me preparado para o que desse e viesse, mas completamente sem medo. Foi como se atravessasse uma ponte suspensa de um extremo da minha vida ao extremo oposto, sabendo que o tabuleiro se esvanecia atrás de mim qual fumo prateado e que não haveria retorno possível. Estava a transitar da razão para o sentimento, da segurança para a aventura, do racionalismo para o devaneio. Totalmente só, dessa vez a solidão não foi uma tormenta; tinha uma qualidade algo mística.

Cheguei ao Reno, naquele ponto ainda recém-nascido e portanto pouco largo. Despi-me e fiz das roupas uma trouxa, para poder transportá-las por cima da cabeça. Deslizar nu para dentro do rio provocou-me uma sensação estranha. As águas eram escuras, muito frescas e misteriosas; foi como se mergulhasse no rio Letes para beber do esquecimento. Encontrei simbolismo no facto de fazer a travessia despido, como se deixasse tudo para trás.»


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Nota: vou estar uns dias (poucos) offline

domingo, 25 de setembro de 2011

Andante con moto outonal

Ontem, na Casa da Música, Lise de la Salle tocou o No. 4 de Beethoven com algum brilhantismo, ainda imaturo contudo. Ao ouvir este 2º andamento, genial absoluto em poucos minutos, senti o anúncio do Outono. Um Outono em suave antítese com as paixões violentas do Verão, um Outono que vence, no final, em luminosa mas dolente serenidade.

Bem melhor, aqui, Mitsuko Uchida, com Rattle a dirigir a Filarmónica de Berlim:

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

marsilea quadrifolia

Descobri, descobri a razão de todos os nossos males, porque esta nação anda sem sorte nenhuma, porque vamos de luxo a lixo, de AAA+ a ZZZ-, de +5% a -5%, de TGV a velocidade boa, de raça de descobridores a raça de caloteiros, de ínclita geração a geração à rasca:

Deixamos extinguir o trevo de quatro folhas!


Embora sob protecção legal,

Decreto-Lei nº 140/99, de 24 de Abril – Anexos B-II, b) e B-IV, b).
Decreto-Lei nº 316/89, de 22 de Setembro – Anexo I.
Directiva 92/43/CEE – Anexos II, b) e IV, b).
Convenção de Berna (Convenção Relativa à Conservação da Vida Selvagem e do Meio Natural daEuropa, 1979) – Anexo I.

foi já demasiado tarde!

Abundância
Número de efectivos muito reduzido.
Em Perigo de Extinção
Ramos Lopes & Carvalho, 1990. - Pois, 1990, foi por aqui que começou o declíneo!


Distribuição em Portugal Continental
No rio Douro, próximo da foz do rio Corgo. Apesar de intensa prospecção, desde 1994, foi localizada apenas num local na margem do Douro, em Trás-os-Montes.

Mais concretamente, na Foz do Corgo! Eis a localização do tesouro!


Vamos lá, gentes, cultivar o quadrifólio por todo o país!

sábado, 17 de setembro de 2011

Dies ist der Tag / Este é o dia

Hermann Max, director musical do Kleine Konzert e dos Reinische Kantorei, é um estudioso dedicado das obras de música antiga, principalmente de Telemann e da família Bach. Conhecido como meticuloso investigador, na linha da corrente musical historicamente informada, procura pelas bibliotecas e arquivos manuscritos antigos , obras desconhecidas, notas musicológicas que garantam a autenticidade da interpretação.


Nasceu em Leipzig e aí tem desenvolvido a carreira. Foi premiado com a medalha Johann Sebastian Bach da Cidade de Leipzig em 2003, depois de Gardiner, Koopman e Harnoncourt.

Dedico-lhe este post porque sou admirador absoluto da sua gravação desta fabulosa cantata, que desenterrou do esquecimento. É raro ouvir tanta perfeição de articulação, de fraseado, de ataque e de sincronia. O arco agógico barroco é usado de forma sublime, ora terminado em staccato ora prolongado até à exaustão. As vozes de Barbara Schlick e Wilfried Jochens são ideais par este tipo de canto, e de uma beleza de timbre arrebatadora. E as melodias são inesquecíveis, de uma alegria que me põe bem disposto desde os primeiros acordes.

Wilhelm Friedemann Bach (1710-1784): Cantata Dies ist der Tag

Barbara Schlick - Soprano
Claudia Schubert - Alto
Wilfried Jochens - Tenor
Stephan Schreckenberger - Bass
Rheinische Kantorei, Das Kleine Konzert

Hermann Max

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Por terras de Alleu: Lamas de Olo e um bichano

E agora uma coisa totalmente diferente:

- um interlúdio rural da silly season -


No brasão de Vila Real está inscrita a palavra "Aleu", que se refere a uma vara (stick) de oliveira que se usava há séculos para jogar uma espécie de hóquei e se chamava alleu (latim aleo, jogador). A bola era uma pedra roliça.

Conta a lenda que, cerca de 1415, estando Pedro de Menezes, 1º conde de Vila Real, a entreter o Rei D João I com um jogo de alleu ao ar livre, chega um mensageiro com notícia de ataque dos mouros à recém-conquistada Ceuta. Perante o alarme do Rei, terá dito Pedro de Menezes, "basta-me este alleu" para escorraçar os marroquinos. A tirada teve êxito e ficou no brasão da Vila.

Anda hoje há quem chame aléu ao "stick" do hóquei.

Serve isto de introdução a uma breve voltinha por terras d'alleu que me levou à aldeia, dita histórica, de Lamas de Olo, no Alvão.

Há aldeias históricas para todos os gostos: de xisto, caiadas, de granito, umas em conserva para turistas, outras abandonadas, umas em ruína, outras que resistem...

Esta Lamas de Olo é de granito, muito limpa, pouco estragada, e com alguma resistência - campos de cultivo de batata e milho, bastante gado.

Já nasce ensacada!!!<(span>

É sobretudo a vitela maronesa - hmmm, tenrinha - que salva esta região. As vacas são poucas mas muito protegidas. Se calhar, mais protegidas que as pessoas.

Madame maronesa

Cabritinho também é muito bom, sobretudo com este ar feliz da vida

Rústica beleza

Outros tempos ? Não, 2011.

Casinha de tecto de colmo, como nos contos.

Fonte da aldeia: as flores dizem tudo.

Estamos no Parque do Alvão, onde barragens de planalto quebram a dureza do granito e brindam as aldeias locais com o que chamam "praias".

e ainda (bónus):

O gato de São Mamede de Riba Tua




Portanto,

1) sou capaz de fazer turismo "cá dentro"
2) contribuo para vencer a crise, financiando locais deprimidos*
3) nem só Florença ou Lucerna me atraem
4) não sou insensível aos bichinhos ( comestíveis ou não...)

* onde, contudo, ninguém passa recibo!! :D

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Foto do ano ?

Sorte de fotógrafo: registar o momento exacto em que um relâmpago atinge a Torre Eiffel, e logo quando ela está iluminada de azul !

Para mais, em vez de atingir a agulha da torre, o raio atravessa a estrutura e atinge-a em pleno coração. Um pára-raios de 324 metros!

Foi a Julho de 2008, mas só agora divulgada.

Foto:Bertrand Kulik
(Figaro/Kulik/Caters NewsAgency/SIPA)

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Guimarães 2012: lindo vídeo, para já...

Receio que uma boa maquia da verba disponível para a Capital Europeia da Cultura tenha já sido gasta neste luxuoso vídeo promocional:


Ah, se a programação tivesse este nível... mas já estamos habituados a um país de encenação, espectáculo e promessas antes, mentira, mediocridade e incompetência depois.

"A Europa dos cafés, das Igrejas, dos caminhos, da Arte e da criação", diz ele.

Benefício da dúvida?

domingo, 11 de setembro de 2011

Em nome do Islão


Não me venham dizer que foi tudo uma tenebrosa conspiração.

Não me venham dizer que a maldade humana não tem côr, raça, religião ou época.

Massacres premeditados a frio e assumidos, contra pessoas, só porque por acaso habitam edifícios simbólicos, num país simbólico, que de tão modelar e exemplar abertura, democracia e defesa de valores se transforma, para tiranos e cretinos, em culpado e demónio de todas as causas:

Não: a maldade foi estúpida, feia, negra, árabe, islâmica, bárbara no século XXI. Veio das areias secas do deserto, onde a verdura estiola. Não tem perdão.

Árvores para cada vítima, cada sobrevivente, cada humano de Nova Iorque. A beleza vence.


Nunca Sounds of Silence soou tão comovente:


[hoje, há pouco, no Ground Zero]

sábado, 10 de setembro de 2011

Estações e azulejos

Estação do Pinhão: as vindimas







Estação de Tua: vai-vem

"Vai dar entrada na linha 1 uma composição com destino a Porto - Campanhã..."

"Deu entrada na linha 2 uma composição procedente da Régua"

Grande animação ferroviária na estação de Tua! antes fosse assim na linha que ia Tua acima, mas não, essa foi arrancada, e agora um imenso estaleiro esventrou tudo, deixou o desfiladeiro feio, sem alma, morto, entregue e escavadoras, betumadoras, centenas de "engenheiros" de colete e capacete que chegam de Audi. Desta vez, nenhum reboliço cívico, nenhuma alta individualidade valeu a salvação do rio.

E paira esta sensação de que, feita a obra, criado o lago artificial da barragem, já estão reservados os terrenos para moradias e empreendimentos turísticos. Os donos já sabem que o vão ser.

Geometrias transmontanas II

Vila Real 2011:


Casa de Diogo Cão: corações ao alto

Casa do centro histórico: corações em baixo

sombras em São João da Pesqueira

Vinhas para os lados de S. Mamede de Riba Tua

Ponte de Ferradosa e barco hotel

Cais de Foz do Tua

domingo, 4 de setembro de 2011

Uns dias em Vila Real

ninguém leva a mal



Uma semanita, entre a cidade, o palácio de Mateus e o Douro em vindimas, a queimar os últimos cartuxos do Verão.

Sem deixar a blogosfera, espero...

"Frase" do dia

- Por amor de Deus, caralho!


Estamos no Porto, claro. De manhã, eu a tentar ler o jornalito com o café, e não conseguia parar de rir.

Se há algum choque semiótico, será talvez porque uma das palavras perdeu significado? E invoca-se assim o Santo Nome em vão? Por amor de Deus é só uma muleta? Ou será que caralho, palavrão sagrado do Puarto, é letra morta?

O mais certo é que já nada signifique coisa alguma. Cada vez mais falamos sem dizer nada. Falta pouco para um discurso de muletas vazias de sentido: "vai e diz ele não sei quê, coiso e tal, e então eu, vamos lá a ver, que é essa coisa? 'tamos a brincar?", conversa de esquina no Centro Social.

O mais engraçado é que se fala, assim, longamente! Ao telemóvel, às vezes é uma viagem inteira de autocarro.

Mas fizemos uma reforma ortográfica.