sexta-feira, 29 de maio de 2015

Ainda sobre fealdade na arte


E também a propósito, ainda, das más encenações de Ópera.

Não é só nas encenações que se faz falsa Arte, lixo que se quer fazer passar por Arte. A mercantilização, o valor monetário e financeiro da Arte, promovem esse lixo em Pintura, em Escultura, em Música, no Teatro e no Cinema ...

Se não vendessem gato por lebre, como conseguiriam valor de venda para gatafunhos, calhaus e molduras em branco ?

"Três painéis em branco", de Rauschenberg, que atingiu recentemente muitos milhões num leilão.

Pollock: valem fortunas coisas que não se distinguem de borradelas de criança.

Os critérios para mim são claros e transparentes:

- Se é feio, não é arte. "Feio" pode ser subjectivo, bem sei, neste critério pode haver divergências, mas não aceito os estetas da fealdade. Rejeito o que for monstruoso, disforme, deselegante, vil, ordinário, ofensivo, kitsch, enfadonho; mas não forçosamente o que for rude ou provocatório, desde que lá consiga encontrar beleza e génio criativo.

- Se "até eu era capaz de fazer isto", não é arte. Simplório, primário, cansativo, totalmente desestruturado, não é arte. Vão assim para o caixote os painéis brancos, as borradelas, os 4' 33'' de silêncio de Cage, os filmes de écran preto...

'Quadrado preto', de Malevich - nada a ver com Mondrian, pois não há nada para ver.

Há tempos uma jornalista de TV deliciava-se divertida porque na feira ARCO de Madrid o público comentava elogiosamente, e até com discurso erudito, uma suposta obra de arte que afinal eram garatujas e borrifos de criança.  Conclui ela: Arte não é nada de transcendente ou excepcional ou genial, não passa de uma convenção de élites, uma vez que não se consegue distinguir de uma borradela qualquer.

Ora é precisamente o contrário, mas a jornalista boçal não podia entender certamente: nem a borradela, nem o resto da tralha que estava pelas paredes da feira, são Arte. É tudo lixo. A Arte, quando existe, distingue-se logo, impõe-se, é avassaladora de beleza, de elegância, de equilíbrio, na alegria ou na tristeza; quase sempre surpreendente, nunca é aborrecida nem repelente, nunca vulgar nem infantil, nunca se encaixa em conversa monetária de investidor nem na vulgata de jornalista. Nunca é balão para o parolo olhar.

O calhau de 340 toneladas que Michael Heizer foi buscar com uma escavadora - só lhe deu o trabalho de transportar o mais pesado pedregulho de sempre (Guinness ?). Durou um ano e custou 10 milhões. Um disparate.


A diferença, por exemplo, entre a Música da 'Iphigénie en Tauride' de Gluck e a horrenda encenação de que aqui dei conta é que esta, qualquer um a fazia, na sua vulgar fealdade; mas a primeira, a Música, exige saber muito, ser compositor - ter um talento ao alcance de poucos, de uma élite.

É por isso que as escolas, a Escola, na sua tendência que vem desde os finais do séc. XX para rejeitar o saber de élites, e o valor superior da História, já quase só forma para a vulgaridade. Nunca produzirá Renoirs, mas apenas pintores de feira. Já estamos a assistir ao resultado.



quinta-feira, 28 de maio de 2015

A Buenos Aires de Borges, por Kodama


«A certain house in the Buenos Aires neighborhood of Recoleta has a window that is doubly privileged. It overlooks a courtyard garden of the kind known here as a pulmón de manzana * - literally, the lung of a block - which affords it a view of the sky and an expanse of plants, trees and vines that meander along the walls of neighboring houses, marking the passage of the seasons with their colours. In addition, the window shelters the library of my late husband, Jorge Luis Borges. It is a real Library of Babel, full of old books, their endpapers scribbled with notes in his tiny hand.


As afternoon progresses and I look up from my work to gaze out this window, I may be invaded by springtime, or if it’s summer, by the perfume of jasmine or the scent of orange blossom, mingled with the aroma of leather and book paper, which brought Borges such pleasure.

The window has one more surprise. From it, I can see the garden of the house where Borges once lived, and where he wrote one of his best-known short stories, ''The Circular Ruins'' . Precisely in this house which worked like the Ker, the ill-fate daimon for the Greeks, to whom even the Gods must obbey, I can move back and forth between two worlds and sometimes wonder, following Borges, which one is real: the world I see from the window, bathed in afternoon splendour or sunset’s soft glow, with the house that once belonged to Borges in the distance, or the world of the Library of Babel, with its shelves full of books once touched by his hands? »



" En una casa del barrio de la Recoleta, en Buenos Aires, hay una ventana privilegiada por un doble motivo: da a un pulmón de manzana, lo que permite ver el cielo y tener un espacio lleno de plantas, árboles y enredaderas que trepan por las paredes de las casas vecinas y que van marcando, con el cambio de sus colores, el transcurso de las estaciones; el otro motivo es que esa ventana custodia "la biblioteca de Babel", es decir, la mítica biblioteca de Borges, con antiguos libros en cuyas portadillas están las notas tomadas por él, con su diminuta letra de miope.

Mirando por esa ventana, mientras va cayendo la tarde, en medio de mi trabajo me invade en la primavera, en el verano, el perfume de los jazmines y el de los azahares que producen una voluptuosidad increíble, mezclándose con el olor del cuero y del papel de los libros, ese aroma que tanto agradaba a Borges.

Esa ventana ofrece una sorpresa: desde ahí se puede ver el jardín de la casa donde Borges vivió y escribió "Las ruinas circulares". Precisamente por esa casa que obró como el Ker, el azar para los griegos, al que hasta los dioses debían acatar, puedo fluctuar entre dos mundos y a veces preguntarme, al estilo de Borges, cuál es el "real". ¿El que veo desde la ventana bañado por el esplendor del sol o la delicadeza del poniente, con esa casa que fue de Borges, o el de "la biblioteca de Babel", con esos anaqueles repletos de libros que guardan aún la caricia de sus manos...? "

MARÍA KODAMA, in 'Windows of the World' (The Paris Review)
Desenho de Matteo Pericoli


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Foi nesta casa de Recoleta (bairro de Buenos Aires) que Borges escreveu o conto "Las ruínas circulares":


- Con alivio, con humillación, con terror, comprendió que él también era una apariencia, que otro estaba soñándolo. -

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(*) Espaço verde central de uma zona urbanizada


domingo, 24 de maio de 2015

Se a idiotice fosse música


Pelo menos, a idiotice reina na Ópera, ou melhor, nas encenações que estão na moda. E reina onde menos se esperaria - na Áustria, ó suprema blasfémia !, no festival de Salzburgo.

Não sei explicar, não se entende, mas o público austríaco e os frequentadores assíduos de outras partes do mundo que eram conhecidos como muito clássicos, bota-de-elástico, casaco-de-peles e smoking, e chegavam à  Grosses Festspielhaus de limusine com chauffeur - agora tornaram-se a coisa mais desbragada, gauchiste, marginal e ordinária que se possa imaginar. Apreciam estas encenações anacrónicas, sem História, e mesmo um tanto taradas. A exigência de autenticidade interpretativa na música barroca é virada do avesso - vale tudo, quanto mais escandaloso melhor. Vitória da estética para audiências da TV.

Isto a propósito da Ifigénia em Táurida, de Gluck, obra de 1779 sobre uma peça de Eurípedes, à volta de Agamemnon, Helena e a sua família após a guerra de Tróia, o mais clássico que possa haver (412 A.C.), uma história de sacrifícios, traições e salvações, a princesa Ifigénia no meio de uma complexa trama de interesses e conflitos; está em Salzburgo com este aspecto:



Com a Bartoli e tudo !

http://www.salzburgerfestspiele.at/language/en-us/das-programm/oper/oper-detail/programid/5142

Nem me venham dizer "Viste? não viste, não podes falar, se calhar até estava engraçado". Não vi, não gostei e não presta.

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Ninguém quer saber do Festival da Eurovisão, o das cançonetas. O ano passado, foi ganho por um pândego "drag queen" de barbas com uma barulho horrível de 3 minutos que designaram "winning song", enfim. Este ano, no meio de zapping, caí na transmissão por acaso (Portugal foi excluído, honra e glória a nós, ao menos por isto). Pois não é que oiço o final da 2ª de Mahler (a Ressurreição), a parte fortíssima nos tutti, órgão e côro, como "separador" entre canções e votação? Até estremeci de medo de que fosse uma música "concorrente". Claro que não foi tocada até ao fim: encadeou, num genial raccord, com uma batucada ruidosa qualquer, uns miúdos desenfreados com as baquetas às pancadas nos tambores de vários formatos. Lindo. Pós-moderno, relativista e intercultural.

A Áustria está maluca? Ou vou eu dar brevemente em maluco ?



sexta-feira, 22 de maio de 2015

Delenda est Palmyra


Foi preciso esperar vinte séculos para que a barbárie se invertesse. É de certa maneira a vingança de Cartago. Os novos bárbaros, cansados de matar pessoas para nada, descobriram que a cultura preza mais as pedras da História do que as vidas deste ou daquele lado da guerra, que as razias contra o património construído doem mais que as balas contra peitos humanos.


Estranha civilização, que dá mais valor às pedras que aos vivos. E contra mim falo: porque tendo a lamentar tanto a morte da romana Palmyra, e pouco me diz mais um ou menos um guerrilheiro abatido? Ou mesmo civil ? Já nem é notícia...

A bela Palmyra foi construída por uma multidão de escravos maltratados e serviu de estância de luxo ao que hoje chamaríamos uma corja de patifes romanos, invasores e imperialistas; pior, fartaram-se de matar nativos, que se defendiam legitimamente. Como é bela, contudo, a Palmyra que nos chegou numa elegância arruinada, numa memória esplendorosa de calhaus alinhados, no testemunho mudo dos gritos e risadas que soavam no Teatro.


Lamento a helenística, a romana Palmyra, terei saudades, talvez chore. Não lamento nem terei saudades de Abdul ou Yasmin, de Palmyra,  derrubados em combate. Alguém me ajuda ? Não vejo saída deste dilema.





terça-feira, 19 de maio de 2015

Vivaldianos: anjo de marfim imperdível !


Publicado em 2012, este Vivaldi e l'Angelo di Avorio, do ensemble Silete Venti dirigido pelo oboista Simone Toni, é uma impressionante surpresa mesmo para quem já ouviu muito Vivaldi em interpretação autêntica por estudiosos do barroco.


Consta de vários concertos para oboé, cordas e contínuo (cravo, teorba) dos anos 1734-35, a que se juntam duas sinfonias para completar o disco. A gravação pela equipa da Harmonia Mundi /Sony é primorosa de detalhe e relevo dinâmico. "Ouve-se" Veneza, e o livrinho muito rico em referências ajuda.

A apresentação gráfica também é uma mais-valia, num vermelhão alusivo ao "Prete Rosso". Até agora, o mais bonito que me chegou este ano.


O Angelo d'Avorio, anjo de marfim, é um oboé mítico construído em Milão (ca. 1730, ao tempo em que Vivaldi já passava mal ), e de que Simone Toni conseguiu uma cópia, que utiliza nesta gravação.

O 'Angelo d'Avorio', do fabricante milanês Anciuti.

Algumas passagens são algo tormentosas, reflectindo talvez os maus tempos que Vivaldi passou no final da vida, com poucos recursos e mal visto pela Inquisição. Logo a iniciar, um susto de pôr cabelos em pé - mas isto é Vivaldi ou é punk ? Uma batida obsessiva que podia ser de uma banda dessas ! E continua estranhamente misturando ritmos e harmonias, surgindo órgão quando se espera oboé, e logo o aparente lirismo deste subitamente rasgado por violentas incursões das cordas. Não é um Vivaldi que escreva "sempre o mesmo concerto".

Quanto ao famoso oboé de marfim, o som é sem dúvida diferente, mais forte, talvez estridente para alguns - soa a marfim - e de afinação mais difícil. Não é para meninos de côro. Simone Toni tem mestria quanto baste para o tocar vertiginosamente.

A destacar uma obra, é a última, a RV 447 para Do maior, onde ambas as partes - solista e orquestra - estão no seu melhor em inventiva e expressão. Invulgar em todos os aspectos - até na duração de 15 minutos. Uma delícia, a luxuriante festa instrumental, e os apontamentos de órgão no incrível Minuet con variazoni, e tudo a acabar com delicada suavidade. Vivaldi transcende o universo barroco, já está um século à frente.
Um CD particularmente imperdível para quem gosta de oboé, dos ataques secos das cordas de tripa, de ritmos alucinantes ... e (muito) de Vivaldi !

Fica o Allegro inicial do RV 447:


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Nota: a editora sentiu necessário esclarecer, 'o tempora o mores', que nenhum elefante foi vitimizado para obter o marfim utilizado na cópia ! Em 1730, algum bicho teve certamente mais azar.

domingo, 17 de maio de 2015

com os cinco dedos bem abertos


Delta

if you have taken this rubble for my past
raking through it for fragments you could sell
know that i long ago moved on
deeper into the heart of the matter

if you think you can grasp me, think again;
my story flows in more than one direction
a delta springing from the riverbed
with its five fingers spread.

Adrienne Rich, n. 1929
1989

Se tomaste estes escombros pelo meu passado
vasculhando por fragmentos que possas vender
sabe que há muito me desloquei
mais para o fundo na essência da questão

Se pensas que me podes abarcar, desengana-te:

a minha história flui em mais que uma direcção
um delta a jorrar do leito do rio
com os seus cinco dedos bem abertos.


[trad. minha]



quarta-feira, 13 de maio de 2015

A histórica Salekhard, no ártico siberiano
- das peles ao níquel e agora ao gás



Salekhard é uma antiga cidade da Rússia na margem direita do rio Ob, Península de Yamal, situada mesmo sobre o paralelo 66 - o Círculo Polar.


Salekhard fica também junto da 'fronteira' entre a Europa e a Ásia, do lado asiático, a primeira cidade na base da encosta oriental dos Montes Urais.

Sinal fronteiriço Ásia / Europa, Salekhard.

É capaz de ser a mais interessante cidade ártica da Rússia, apesar de a sua História ter sofrido uma época terrivel de miséria humana durante a era estaliniana.

1- praça central ;
2 - Igreja de S. Pedro e S. Paulo ;
3 - fortaleza de Obdorsk.

O novo centro urbano.

População: ~ 45 000
Coordenadas: 66° 32′ N, 66° 36′ E


No Verão, nem parece que estamos a 66º N ! A riqueza das jazidas de gás trouxe uma inesperada modernização.

Ou é novo, ou pintado de novo.


Centro comercial "Polaris" com cinemas 3D, no ártico siberiano...

A cidade enriqueceu nos últimos tempos pela descoberta de gás e óleo na região, onde a Gazprom tem investido largamente. Há um boom de crescimento da população, da construção e dos serviços públicos.

Nova ponte pedonal.

Em contraste com algumas tenebrosas cidades-gulag vizinhas, como as duas tristemente célebres Vorkuta e Norilsk, Salekhard aparenta uma razoável qualidade de vida, e um património histórico-artístico disseminado entre os novos prédios de cores vivas ( a moda na Rússia moderna é colorir, em contraste com o antigo).

Este edifício era o centro de alistamento militar nos tempos soviéticos; agora é o registo civil, onde se realizam os casamentos, muitas vezes sumptuosos como se usa na Rússia.

No centro resistem alguns edifícios dispersos da arquitectura tradicional em madeira.


Janela com a moldura em madeira esculpida e a representação da icónica rena.


Salekhard foi fundada em 1595, era então apenas uma fortaleza cossaca de nome Obdorsk - foi a primeira povoação russa estabelecida no território da Sibéria. Obdorsk (= "porta do rio Ob") controlou até ao século XVIII boa parte do comércio na zona ártica da Rússia e era o maior mercado da Sibéria ocidental. Mas nos finais do séc. XVIII começou a perder importância e foi em grande parte demolida.

O forte de Obdorsk, num promontório sobre o rio.

No séc. XIX, Obdorsk  renasceu com o negócio das peles - de zibelina, arminho, raposa, esquilo e rato muscado. A indústria das pescas também ajudou graças à riqueza em espécies do estuário do rio Ob, e ainda hoje é a segunda actividade económica da cidade.

O nome Salekhard só foi atrbuído em 1933; deriva de “Sale-Khard”, no dialecto Nenets, que significa “povoado sobre um promontório". Os Nenets são o povo nativo da península de Yamal - a região administrativa designada por  Yamal-Nenets. Também denominados "samoiedos", são nómadas que vivem da criação de grandes manadas de renas e estão etnicamente próximos dos lapões escandinavos.

Reunião de Nenets em trajo tradicional. É uma das maiores comunidades nativas da Rússia. Realizam um festival anual levando um acampamento das suas tendas para a cidade.

Igreja de S. Pedro e S. Paulo.

Desenhada pelo arquitecto alemão Gottlieb Zinke, foi completada em 1894. Na altura era o único edfício em pedra e tijolo na cidade.


Construída sobre permafrost, os alicerces e o isolamento térmico constituíram um desafio tecnológico novo nestas paragens. As duas torres vêem-se a grande distância na planície da taiga.


O calor da luz na noite polar



Obdorsk Ostrog, a fortaleza sobre o rio Ob

 


A fortaleza de Obdorsk é o que resta do primeiro povoado russo na Sibéria.
Era de forma quadrangular, com duas torres de observação.


No interior, a Igreja Vasilyevskaya, em madeira, data de 1602.

É uma espécie de 'Kremlin de Salekhard'.


A Obdorsk Ostrog foi restaurada depois de 2000, tendo reaberto como monumento histórico e museu em 2006.

O Teatro 501

Já do século XX, da época soviética, este invulgar edifício em madeira é um dos edifícios históricos - mandado construir para animar os trabalhadores da ferrovia, fica no centro da cidade, na Ul. Respubliki.


A designação '501' deriva do Gulag 501 que forneceu prisioneiros para a construção da linha férrea.



A ferrovia Salekhard-Igarka

Na década de 1950, Salekhard  foi um dos estaleiros principais na construção da linha férrea 501 Salekhard–Igarka, que deveria completar a ligação de Murmansk e Arkangelsk no noroeste com o Chukotka no extremo oriente.

O projecto iria exigir entre 60 e 120 000 trabalhadores (a maioria presos políticos dissidentes). A ideia de Estaline era construr uma ferrovia capaz de transportar o níquel das minas de Norilsk (outro inferno industrial siberiano rodeado de gulags) até um porto marítimo rentável, o que implicava transformar Salekhard num porto do ártico. Mas esses 1 297 km de ferrovia seriam integrados na grande linha transcontinental que, atravessando toda a Sibéria, era suposta transformá-la, levando o progresso e a industrialização.


Um dos campos de trabalho gulag iria montar a linha férrea para leste de Salekhard (501); outro, o 502, a partir de Igarka para ocidente. Mas como é tristemente bem conhecido, a engenharia soviética falhou estrondosamente, desvalorizando o efeito do permafrost e do gelo. Construído um troço novo, em breve se afundava e deformava; nem sequer um reforço especial tinha sido planeado. As condições de trabalho são difíceis de imaginar, tudo transportado e montado à mão, sem equipamento de frio, a temperaturas de congelar que chegavam aos -60º . As ventanias de neve e gelo matavam aos milhares.


No Verão, os pântanos e charcos abundantes geravam muitos milhões de mosquitos e parasitas, outra causa de numerosas mortes entre as equipas de trabalho.



A natureza acabou por destruir e reabsorver a fraca obra construída. Os restos ferrugentos foram sendo integrados na taiga - maquinaria, pontes, acampamentos e aldeias abandonadas semeiam a paisagem. São ironicament conhecidos pela população como os "alegres 500", nome atribuído pela propaganda oficial.

O filme 'Stalker', obra prima de Andrei Tarkovsky, usou estes quadros com mestria para pintar simbolicamente o regime soviético - ferrugem e terror no meio da silenciosa verdura.

http://englishrussia.com/2007/08/22/stalins-lost-railway/

Mas Salekhard conseguiu finalmente uma ligação ferroviária. De forma civilizada e inteligente.

Um combóio actual passa a fronteira euro-asiática.

A travessia do largo estuário do Ob, que congela no inverno, é também agora possível com recurso a hovercraft (ACV) - um meio de transporte que infelizmente foi quase abandonado na Europa. A travessia é importante para alcançar a estação de combóios, que fica em Labytnangi, na margem esquerda.

A nova estação Labytnangi - Salekhard. À grande - se não for grande, não é russo.

Monumento ao Paralelo 66, o cícrculo polar ártico.

A ponte Fakel ('Tocha') , símbolo da nova riqueza da cidade, com um café panorâmico no topo.




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Esta foi mais uma digressão virtual por um sítio onde nunca irei, mas com pena. Pela situação e pela História, uma cidade improvável, quase como diria Calvino, uma cidade invisível.